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Na solidão dos montes

Há quanto tempo estou para aqui esquecida das gentes e do mundo?
Já pouco ou nada resta deste pedaço de ferro, enferrujado, acidificado com a passagem dos anos, ao sol, a chuva, ao frio.
Ainda me lembro, quando pela manhã a água fresca enchia-me as entranhas, depois, as carícias das labaredas a crepitar a lamberem-me o corpo, devagar, aromas de árvores silvestres a transformar o líquido fresco em combustão ardente.
Legumes, carne de porco salgada, uns bagos de arroz!
E era uma alegria ver os homens e as crianças regalarem-se com esse manjar que saía das minhas entranhas! E eu observava!
Matei a fome indizível do lavrador, do ferreiro, do mestre, da mãe e da criança.
A todos afaguei os ventres cansados e doridos
De vazios e solidões!
Tempos de labuta, tempo das grandes fomes!
Depois, chegou a modernidade, as cozinhas revestiram-se de novos utensílios.
Eu por ali fui ficando
Utilizavam-me para aquecer a água, para de vez em quando, ainda cozinhar a memória da fome e da fartura.
A memória da fome!
A memória dos sabores e aromas da infância, daqueles que partiram para longe, e chegavam depois, sedentos do passado.
Um dia atiraram-me para aqui,
Ainda servi como vaso para umas plantas, salsa, alecrim, rosmaninho, uma roseira brava ainda cresceu no meu ventre cansado!
A minha utilidade era agora decorativa, mas a vaidade não me falava dos afetos, nem de ventres vazios.
Depois, até disso se esqueceram.
Sou a metáfora do tempo que passa, a solidão da serra, a aridez das pedras.
A velhice esquecida na soleira da porta, como os velhos vendo passar o mundo, os dias, as horas, a vida.
Sou um pedaço de ferro, enferrujado, sem serventia, sou o que resta da memória da lareira, do alimento dos pobres, dos aromas doces e silvestres.
Sou o retrato dos homens perdidos na solidão  dos montes!
Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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