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Mais um texto sobre eutanásia

Não queria escrever este texto, mas vou ter que o fazer.

Era mais fácil não dizer nada e vocês continuarem a gostar de mim. Mas eu, como o Partido Comunista Português, talvez goste sempre do caminho mais difícil.

Eu sou a favor da despenalização da eutanásia.

Mas em matéria legislativa, o que está em causa não é o “sim” ou o “não”. É o “como”.

Com evidente sacrifício e dor daqueles que, com doenças terminais aguardavam a aprovação do direito à sua eutanásia — e que tornam absolutamente urgente a sua despenalização — parece-me também absolutamente fundamental a forma como aqui a preocupação do PCP com os mais pobres e desfavorecidos se expressou.

Repare-se que o PCP não tem nada a ganhar com esta posição. Os eleitores católicos não vão passar a votar comunista por causa disto (embora devessem!). Era muito mais fácil para o PCP fazer o que todos estavam à espera e aprovar tudo o que são as “bandeiras da esquerda” (que atualmente são na verdade apenas as bandeiras das liberdades individuais — do individualismo, do liberalismo, no fundo, do capitalismo, com as quais eu também concordo).

E por tanto, não tendo nada a ganhar com ele, o voto contra do PCP foi uma posição muito corajosa, que merece o meu respeito total.

Acredito numa lei que permita o acesso à eutanásia, mas quero que essa lei seja muito boa, à prova de quaisquer manipulações: à prova de quaisquer médicos que, para poupar dinheiro ao hospital público, sejam administrativamente mandados dizer aos pacientes que não há esperança de cura para os induzir à eutanásia. À prova de pessoas que por estarem abandonadas pela família numa idade avançada ficam suicidarias pela depressão.

Dizem-me vocês “mas que exagero, nenhum médico faria isso”.

Não sei se já ouviram falar de juntas médicas?

Talvez tenham a sorte de não ter nenhum familiar ou pessoa próxima que tenha passado por elas.

Nas juntas médicas em Portugal, para poupar dinheiro ao Estado, médicos mandam trabalhar professores com braços inchados por terem feito quimioterapia, que por isso não conseguem usá-los, para escrever por exemplo, e por causa disso caem das escadas abaixo e partem as costas e agora deixam de conseguir andar, e ainda assim as juntas médicas continuam a não lhes dar baixa. Para poupar dinheiro ao estado.

Para poupar dinheiro ao estado, as juntas médicas mandam dar aulas pessoas a quem os dentes caíram todos por causa da quimioterapia. Para poupar dinheiro ao estado, há limites máximos nas baixas que podem ser dadas. Se uma junta em determinado mês receber mais pessoas incapacitadas que o número de baixas de longa duração que pode atribuir, manda as pessoas trabalhar pra não ter o ministério a chateá-lo com pedidos de relatório, despromoção ou outras sanções que desconheço. Mas conheço doentes de cancro a ser mandados trabalhar.

Nos hospitais também há pessoas mandadas para casa por falta de camas. Nunca ouviram falar disso? O “vai morrer a casa”? Os ministérios têm limites orçamentais, é normal. O dinheiro não chega para tudo.

Ora, num país pobre como o nosso, com um sistema de saúde público que a direita quer desmantelar (a hipocrisia da direita neste tema é atroz), dado a cortes, com escassez de camas para internamento, falta de médicos, falta de enfermeiros, carências de espaço e de meios, admirar-vos-ia que houvesse a tentação da eutanásia por parte das próprias pessoas doentes enfiadas para um canto de um hospital sem condições, sem família nem amigos, para escapar a este pesadelo? Num país austero como Portugal onde os mais velhos, mesmo saudáveis, já têm como lema “sou um peso à minha família, queria morrer, já não estou aqui a fazer nada”?

A questão é que é o estorvo da presença destas pessoas nos corredores dos hospitais, o estorvo das pessoas a mais nas camas a menos, que nos faz não esquecer o problema. É a presença delas que nos obriga a melhorar o estado do Serviço Nacional de Saúde. E portanto lamento, mas ser de esquerda é lutar para que estas pessoas possam viver com dignidade os seus últimos dias, meses, anos.

Como já disse, no campo legislativo, as questões não são de “sim ou não” mas de “como”. E este “como”, num país pobre como o nosso, ainda está por clarificar como pode ser bem feito. Há avanços civilizacionais que não podem ser operados antes de o país estar pronto. O progresso é um caminho. Não se saltam etapas.

E por isso a conclusão a que chego com tudo o que li hoje é que a maioria das pessoas mais novas, porque necessariamente passou menos por hospitais e internamentos de longa duração, quando defende o direito à eutanásia fa-lo de forma meramente filosófica.

E portanto, apesar de acreditar na despenalização da eutanásia, como a argumentação da maioria dos defensores do “sim” que conheço é muito, mas muito, frágil, esta posição do PCP foi importante. Vamos debater mais um bocadinho. A lei há de ser aprovada ainda nesta legislatura de qualquer modo.

Obrigado ao PCP por ter tomado uma posição inesperada que não só pôs toda a gente a falar do assunto, como pôs toda a gente a pensar.

Fotografia de GERMANIA ANNO ZERO, um dos meus filmes favoritos sobre eutanásia.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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