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Para lá da tática

Como homem e português, correspondo na perfeição ao estereótipo do futebol. Gosto. Vibro. Altero rotinas. Chateio-me. Festejo. Irrito-me. Não ganho nada com isto. Perco tempo. Tenho prazer. É só mais um jogo antes de ir estudar. Para muitos, sou mais um “quadrado” que vê 22 tipos a correr atrás de uma bola. Para os opostos destes, aprecio uma arte que tem mais valor do que a escrita, se sobrepõe à política e colocam-na à frente da família. Não me revejo em nenhuns. Até na paixão, sou um irritante moderado.

Na verdade, são poucas as áreas onde a dicotomia de sentimentos e a dificuldade para os definir são tão grandes como no futebol. Definição. Curiosamente, será também esta a característica que distingue os melhores dos lendários dentro do campo. Mas não, não quero entrar em pormenores técnicos do jogo. Primeiro, porque não tenho competência para tal e, segundo, porque aos antigos treinadores de bancada, juntaram-se recentemente os treinadores de teclado, estando o mercado mais lotado do que nunca.

O que falo é de paixão. E essa pode ser associada a tudo. É legitimo amar o futebol, como é amar dança contemporânea, ou Salvador Dali. Será amar a palavra certa? Não sei… talvez seja manifestamente exagerado, mas o que seria do amor sem o exagero.

Hoje em dia, o futebol ganhou um lugar na conversa diária que se sobrepõe a tudo o resto. Ao contrário do que muita gente argumenta, não tenho nada contra o futebol falado. Para um amante da modalidade, trará tanto prazer ver uns bons 90 minutos de bola como uma pedagógica análise tática sobre a forma de jogar de uma equipa. O que, em contraciclo, não tem qualquer interesse, é o futebol discutido e, esse sim, parece, lamentavelmente, proliferar. A maneira acéfala como se discute o jogo, ou se defende o indefensável, leva a uma conotação que o futebol não deveria ter. Porque é mais bonito que isso. Porque tem estratégia. Porque ajuda a perceber momentos da História. Porque tem imprevisibilidade. Porque tem emoção. São muitos os porquês, para reduzir tudo num penalti duvidoso. Tal como há uma linha para separar os que estão em jogo dos que estão fora dele, também deveria haver uma para separar o que faz parte do futebol, daquilo que não faz parte de coisa nenhuma.

Desde que cheguei a Esch-sur-Alzette, comecei a frequentar sempre o mesmo café para ver os jogos que, como já disse, tento não perder. Porém, não raras vezes, acabo mesmo por me deixar levar com o envolvimento e não presto assim tanta atenção ao que se vai passando no campo. Normalmente, evito ver futebol com outras pessoas. A animação está no jogo e, entre triangulações e passes de rutura, não gosto que me interrompam com perguntas ou conversas que nada têm a ver com o que estou a apreciar. Para quem não entender o que refiro, imagine-se no cinema com alguém a comentar, mal ou bem não interessa, o filme ao seu ouvido. Porém, aqui, tive de me adaptar a essas circunstâncias e, à hora certa, lá estou eu.

Neste sítio, tal como os jogadores quando entram em campo, quer se conheça ou não, cumprimenta-se toda a gente de aperto de mão. Depois, sem chatear muito, é sentar onde calhar porque, como ouço sempre quando lá chego, “não há cá lugares marcados”. Para beber, não pode faltar a “mini”. Nesta bancada, mais importante do que saber o nome, é saber o clube que se apoia e isso, fica logo dissipado quando escolho a marca de cerveja que quero. Mas pouco importa. O jogo vai começar e não é tempo para conversas, mas sim para as últimas apostas. Num momento um tanto ao quanto solene e circunspecto, uma ou outra pessoa dirige-se à máquina das apostas e faz o seu prognóstico sem o revelar aos parceiros. Aquela maldita máquina que serve para dar dinheiro, serve também para roubar a excitação do golo em direto, que balde de água fria cada vez que a máquina se antecipa à televisão. Pior que isso, só mesmo a bandeirola no ar depois do golo festejado.

O árbitro apita. Primeiros minutos e faz-se silêncio. Dissipa-se o barulho das cadeiras a arrastar e das garrafas a chegar. O dono, esse, senta-se na mesa com os clientes e o balcão fica vazio. Na realidade, deixam de existir donos e clientes. Quem manda é a bola e nós estamos ali todos para o mesmo. Se os primeiros minutos parecem indicar que se está no teatro, rapidamente essa ideia se desvanece. Não tarda e lá surge o primeiro palpite. Geralmente, uma crítica e sempre vinda de alguém mais velho e sem medo da reação.

Aqui, vá se lá saber porquê, o árbitro não costuma ser o alvo. Primeiro, e antes de todos os outros, os comentadores. Afinal de contas, isto é futebol, não é poesia e a sentença está feita ao fim dos primeiros 15 minutos, “este tipo não sabe o que está a dizer”. Após este texto, arrisco-me a sofrer da mesma análise. Palavras a mais para quem gosta é de ver uns chutos na bola.

Depois dos comentadores, os jogadores. Desde o início que os mal-amados estão definidos. Estes, não podem falhar nunca. E mesmo quando acertam, havia certamente uma opção mais certeira do que a levada a cabo pelo escrutinado. Aqui e ali, salpica-se o silêncio com frases repetidas à exaustão pelos cafés desse mundo fora. Começando pelo “este miúdo tem bons pés” e terminando no “isto já está feito”. Enquanto isso, os mais novos vão rindo e puxando pelas eloquentes análises dos mais velhos. Tal como não há donos e clientes, na hora de ver a bola as faixas etárias desaparecem. Naqueles 90 minutos mais os descontos, todos se vão metendo com todos numa relação de “tu cá tu lá” que deixa entender muitos anos de convívio. Ou melhor, muitas épocas porque aqui o tempo mede-se jornada a jornada.

Chega o intervalo e é hora de recolher às cabinas. Uns aproveitam para ir lá fora fumar o cigarro da praxe enquanto outros usam o tempo para fazer exercícios de aquecimento bem ali ao lado numa mesa de matrecos. Mais uma cerveja, mais uma aposta e volta a sentar que já entraram para a segunda parte. Em certos momentos, há alguém menos interessado na arte do esférico que atravessa a porta da rua só para tomar o café depois de jantar. Mas atenção, seja por cinco minutos ou pela noite inteira, ninguém se safa ao ritual de apertos de mão quando chega.

Ali, juntamente com as pessoas do costume, estão os heróis que todos conhecem. Nas paredes, Ronaldo sorri numa foto tirada momentos antes de chorar de tristeza e, mais tarde, como muitos de nós, fazê-lo de alegria. No fundo, entre estas pessoas que me rodeiam e Ronaldo não vai uma grande distância. Talvez por isso o tratem por tu e lhe digam o que tem de fazer a cada jogada. Quando falha, não o poupam nas críticas, mas a culpa é dele que os habitou mal.

Tal como todos eles, Ronaldo saiu do país à procura do sonho. Seguiram caminhos com direções opostas. Um, rumou ao mediatismo e aos contratos estratosféricos e os outros à cinzenta cidade de Esch-sur-Alzette. Ambos procuraram as melhores opções e certamente que todos lutam diariamente por ir o mais longe possível. Num mundo paralelo onde o futebol não fosse alimentado por todos nós, Ronaldo iria, provavelmente, continuar a alimentar o sonho de ser o melhor e, estes senhores, iriam repartir bolas de ouro e luxos, com a mesma simplicidade com que ali, sentados no café, analisam cada jogada do emigrante mais famoso do país de onde todos partiram.

Mas deixemo-nos de exercícios utópicos e de divagar pela imaginação, entretanto, o jogo terminou e está na hora de regressar a casa que já se faz tarde e amanhã trabalha-se. Encontramo-nos aqui para o próximo jogo e não se esqueça! Entrar sem cumprimentar, dá direito a cartão amarelo e ninguém quer ir para rua. Nem no jogo, nem aqui. Lá fora está frio.

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