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Homo Sapiens Indiferentis, ou a negação da mais elementar fraternidade

Muitas vezes se fala no famoso jet lag, mas a minha maior dificuldade encontro-a, não na gestão fisiológica dos fusos horários, mas na da vivência das gentes e das paisagens humanas. Depois de uma viagem longa, com três voos que devem ter somado cerca de vinte horas, acabado de chegar à sala de aula em São Luís do Maranhão, estoirado de cansaço, ainda consigo ser surpreendido numa breve conversa com uma aluna.
Perante uma turma com vários pastores, e talvez fruto de uma certa desfaçatez típica de quem dormiu pouco, deambulei por várias situações em que pastores foram presos, acusados de burla, de roubo, de desvios. No intervalo para o café, uma aluna, enfermeira, veio ter comigo. Queria falar de uma experiência “na primeira pessoa”.
Tudo era o normal, com uma tentativa de desvio de fundos, com os recursos para trabalho social a irem parar sabe-se lá onde…. nada de novo a não ser a intensidade colocada no olhar, mais que na voz. Esse foi mesmo um dos primeiros aspectos a me agarrar a esta mulher que claramente já muito vira e muito tivera que transmitir com o olhar, com gestos, com modos que se usam quando as palavras nada conseguem dizer.
De resto, foi pelo olhar que eu fiquei preso e ficarei ainda por muitos dias. Falou-me dos índices de pobreza em algumas zonas do Estado. Falou-me das carências mais básicas. Falou-me do trabalho voluntário que é desenvolvido e de como as autoridades nada fazem. Mas o essencial não foi falado. Foi visto.
No telemóvel, mostrou-me uma vídeo de poucos segundos. Não sei se trinta, ou menos. Mas a visionação foi horrorosamente longa. Dolorosamente nítida, ao ponto de se perceberem as estrias na superfície das larvas que comiam as costas de um jovem. Com feridas de vários centímetros de largura, e com uma profundidade que rasava os ossos, um jovem agonizava numa mesa a receber os primeiros tratamentos para lhe retirar essas larvas que, literalmente, o comiam vivo.
Há já algum tempo que eu não era tão brutalmente abalado. E fui-o de forma e no momento mais inesperado. Sim, o Brasil continua a ter gigantescas bolsas de pobreza e ainda maiores núcleos de indiferença. Mas esse vídeo não era o único; outro mostrava um crânio na mesma situação. Não aguentei ver e desviei o olhar. Soube que não eram casos raros. A lepra grassa abundante nas zonas mais pobres deste Estado, num país que se farda de gala para receber Mundiais de Futebol e Jogos Olímpicos.
E, por mais uma vez, com uma intensidade antropológica e, quem sabe, teológica, levo-me à questão fundamental: porque nasci num espaço onde tenho a possibilidade de não ser comido vivo por vermes? Porque não nasci aqui, numa aldeia onde se vive na miséria, ou nos campos de morte do Ruanda?
Nada mais sou que um exactamente igual em corpo e mente. Tão gratos que somos a uma evolução que nos levou a píncaros de excepcionalidade, afinal continuamos a votar elementos da nossa espécie para níveis que nem ao limiar da sobrevivência chegam. Isto é, uma Fraternidade Humana que deveríamos ser, ainda implica o indescritível, negando-a no simples direito à mínima dignidade no corpo animal que temos, já que a mente humana, essa, nem sequer é para aqui chamada.
Que fazer com essa sorte de não ter nascido para ser comido vivo por vermes? Que fazer com esse peso de não ter nascido no Ruanda? Que fazer com essa mácula de ter sido bafejado por um “acaso” que levou a que eu seja eu, e não alguém que nada sabe, ou nada experienciou, dos avanços célebres do auto designado Sapiens Sapiens?
Sem respostas, acho que não será esta a minha boa noite de sono..
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