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Histórias d’emigração

O chá quente de camomila fumegava na chávena na sua frente, o aroma  doce perfumava o espaço, as mãos ocupadas no encadeamento do croché, como se encadearia o discurso da narrativa da sua vida, o sons do  dos copos, dos talheres, a voz da empregada falando com os clientes preenchia o vazio das palavras, os silêncios guardados  num peito à mingua de pessoas que soubessem escutar.

De olhar vivo, um rosto luminoso, carregava no corpo pouco mais de 60 anos e a uma alegria imensa de viver.

Nem sempre fora assim, nem sempre os dias faziam nela o efeito do sol em dias de primavera, aprendera sozinha os caminhos da luz.

A longa história que seguiria em tudo contrastava com a luminosidade do local e com o odor perfumado que transbordava da  chavena de chá .

Joaquina tinha deixado o seu país havia mais de 40 anos, tinha vindo sozinha num autocarro, daqueles que atravessam a Europa, carregado de gente que procura uma nova vida. Atravessam as lezírias de Espanha, as montanhas dos Alpes erguidas ao céu. No seu interior gente prenhe de sonhos e de ilusões, esquecidas já das pequenas aldeias que as vira  nascer, sim, porque deixar o país e instalar-se noutro país, carrega dentro de si o peso do esquecimento e do luto.

Assim viajava Joaquina, ainda muito jovem mas já com o coração magoado do abandono prematuro, haveria de voltar, quase todos os anos, haveria de sentir uma e outra vez o cheiro de feno estendido ao sol, haveria de aquecer o corpo e a alma carregada de saudade nas noites luarengas do mês de Agosto.

Agora com a tristeza no peito, viajava para um país desconhecido.

Instalou-se na casa da irmã que tinha chegado  antes dela. Havia de encontrar trabalho numa padaria, partilhar os dias com pessoas que desconhecia, e de quem não compreendia uma palavra.

Madrugava, apanhava o carro da empresa, nas manhãs brancas de inverno, o frio no corpo e na alma, a neve a chegar aos joelhos, e trabalhava, trabalhava imenso…

Haveria de conhecer o marido, ficou grávida pouco tempo depois de o ter conhecido, ainda eram namorados e já a violência se fizera sentir.

Ele amava uma mulher que deixara no seu país, Joaquina era apenas o consolo para os dias de solidão, a ela nunca a amou, nunca lhe mostrou afeição, carinho… amor.

Tiveram de se casar quase forçadamente, a  gravidez tinha trazido aos dois uma realidade diferente, e a responsabilidade da paternidade falou mais forte.

Durante anos viveram assim a violência, o desapego, o desencanto, o desassossego…

A mulher que trabalha e tem que chegar a casa e cuidar de tudo, dos filhos, da lide da casa, ouvir o marido entrar pela porta mal humorado, sempre mal humorado, com o descontetamento agarrado ao corpo, a infelicidade na voz.

Durante toda uma vida nunca acompanhou a mulher a lado nenhum.

Mas Joaquina aprendera, aprendera a encontrar o seu mundo, o seu espaço, a ser feliz nas coisas mais simples que a vida pode trazer à vida de uma mulher.

Habituara-se ao país, ao novo mundo que a adoptou, habituara-se ao marido , a silenciar a voz quando ele entrava em casa com olhos raiados de fúria.

Joaquina não deixa transparecer todas as dores, todos os dramas da sua longa vida. Quase cinquenta anos de emigração tinham marcado na sua vida o peso da sabedoria, do conhecimento humano, na grandiosa descoberta das dores e das alegrias dos homens.

Sozinha vai encontrar-se com amigas, volta quando lhe apetece ao seu país Natal, já não sente medo, já não sente tristeza.

É uma mulher do mundo, como são os sons da gente ao nosso redor, e perfume do chá que  nos embala os momentos de partilha.

Uma mulher simples, mas que sabe o valor imenso da vida. E conhece todos os atalhos para atingir a liberdade.

São Gonçalves

in Histórias d’emigração

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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