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Graça Morais e a coragem de enfrentar o (nosso) medo

Quando há mais de um ano participei na escolha da imagem que fecharia a narrativa do Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano (CICS), em Bragança, pude, pela primeira vez, embrenhar-me um pouco na obra de Graça Morais.

O edifício do CICS situa-se mesmo ao lado do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, e era inevitável ir a um grupo de obras desta pintora, uma série baptizada com o nome “O medo”, buscar uma imagem que colocasse um ponto final numa exposição que estava marcada pela memória da Inquisição, pelos processos e pelos condenados, pelo seu sofrimento e morte. E era inevitável porque toda a exposição estava montada em cima da ideia do medo, da necessidade de os cripto-judeus se esconderem, sob risco de serem denunciados, perseguidos e mortos.

A imagem escolhida era exactamente o que se pretendia. Um quadro esplêndido, uma excelente peça, mas também com a típica imagética da Graça Morais, onde os seres pareciam clamar por morte. A cabra que se contorcia ao olhar-nos, estava enquadrada por um vermelho que sem ser sangue, era dor, era morte, era um turbilhão de tudo aquilo a que eu quereria fugir no meu mundo quotidiano, mas era exactamente aquele o mundo que se queria mostrar didaticamente ao visitante.

Inaugurada no dia 15 de Junho, nesse mesmo centro com o seu nome, Graça Morais mostra-nos uma grande exposição que é um forte soco na visão antropológica, na imagem da nossa memória e das nossas acções, no desejo de ser diferente e de fugir a esse medo ancestral que parece nos ter impregnado no modo de agir e de ver o mundo.

Integrado no evento Terra(s) de Sefarad, uma grande mostra e debate de cultura judaica, Graça Morais, com a curadoria de Jorge da Costa, leva-nos numa inebriante viagem através de imagens que, sendo atemporais, quase mitológicas pelos arquétipos, pela imagética definida da pintora, são também todas as tragédias dos nossos dias. Numa pintura sem tempo, Graça Morais mostra-nos como a crueza que permitiu as barbaridades de mortes passadas, como a dos cristãos-novos de Bragança, se plasma numa imensa capacidade de matar, de fazer sofrer que a nossa espécie teima em levar por diante. É, de facto, o Mal que temos aqui retratado.

Mas esse Mal tem uma gramática própria e implicações complexas na nossa mentalidade. Desde Hannah Arendt que ainda nos é mais insuportável o Mal, ou o que quer que enquadremos por baixo desse rótulo. Com esta pensadora percebemos, com a ideia da banalização do mal, que o que ele implica é um caminho que, quando cruzado com a tensão social produzida pela Santa Inquisição, por exemplo, e por toda a mentalidade que dela nos adveio, me deixa sem palavras perante a brutalidade do que isso implicou na nossa mentalidade colectiva: o normal que é ter medo.

Então, o ter medo torna-se, não num quadro pontual, mas num quotidiano, numa normalidade, como que uma visão antropológica, uma cosmovisão. O mundo é medo, e tudo o que ele implica. Somos filhos do medo, mas não no que ele é de adrenalina injectada no momento em que por ele somos invadidos. Somos filhos de um outro medo, o que nada de reacção promove, o da normalidade que não suscita em glândula alguma o acender de uma luzinha que indica urgência ou anomalia. O medo é o normal, é uma forma de estar que se transformou numa forma de ser. Não ter medo é que implica o acender de um alarme.

Retomo João de Almeida Santos e Filipa Oliveira Antunes (“Reflexões em torno do Belo […])[1] e a questão da subjectividade e da universalidade do sentimento do belo: “[…] o belo não seria confinável num conceito ou numa simples representação sensorial, já que ele transcende a dimensão do pragmático, do útil ou do interesse, como mera projecção da vontade, porque remete precisamente para essa “subjectividade universal” que o diferencia do simplesmente agradável, como defendem o Kant da Crítica do Juízo (1790) ou o Schopenhauer de O Mundo como Vontade e Representação (1819)”. Talvez o belo seja a única saída, mesmo que desconfortável, para o medo tão plasmado desde a ancestralidade na nossa cultura popular.

Seguindo a epígrafe com que Graça Morais abre a sua exposição, “É através destas pinturas que faço uma reflexão profunda sobre a resistência de mulheres e homens que procuram o seu lugar na Terra, lugar no qual recusam a fatalidade do Medo e a indignidade do Mal.” O universal que nos obriga a sair de nós mesmos porque pertencente a uma subjectividade que já não é apenas nossa, reside no tempo longo de todas as memórias e de todas as possibilidades de mal. Não é apenas mal, mas sim Mal. Avassalador, como se marcasse a condição humana.

Contudo, a narrativa de Graça Morais não é uma derrota. É dura, difícil de digerir na nossa imagem de sapiens sapiens, mas é criadora de redenção. Recuperando as tensões a que somos levados ao ver esta exposição, recentemente, numa breve entrevista Graça Morais dizia que “Nós, através da arte, podemos lutar contra a barbárie”. É por aqui que, ao mesmo tempo que somos esmagados pelo peso do Medo, somos lançados numa hermenêutica que nos remete para a libertação.

Aliás, não é nada por acaso que a exposição tem como título “A coragem e o medo”. Este medo, é condição, mas não me parece ser resignação. É dor, mas é uma dor que mostra que ele apenas existe porque a vida se mantém. E nessa pequena chama que se vislumbra num olhar, num rosto, está a saída que temos para derrubar tudo o que hoje em dia nos representa a lembrança mais distante dos critpo-judeus mortos pela Inquisição ou do drama dos refugiados nesta velha Europa.

[1] “Reflexões em torno do Belo, do Infinito e da Linha Elíptica II”, Jornal Tornado, 28-03-2017

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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