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Festas Populares, ou o Verão em sintonias sacras e profanas

Passado o dia 15 de Agosto, a não ser algumas aldeias e vilas que se guardam para ao fim das colheitas e o vinho novo no S. Martinho, a maioria das localidades portuguesas já viveu o seu dia de fausto e glória, a sua festa.

Durante dois ou três dias, as gentes da terra, mais os que andam por fora que os habitantes, brincam, dançam, comem e, pelo meio, oram ao seu santo de devoção, participam na missa e fazem a procissão. Contudo, estas actividades ditas de mais religiosas raramente são as que ocupam mais gente. Parece que a festa em honra de uma qualquer devoção secular é ultrapassada pelo interesse imediato da parte nada santa da festa, a “festa” em si, tudo o que mete música, dança, comida e bebida.

Muito longe vai a divisão resultante da leitura simplista da tese de Mircea Eliade na distinção entre o Sagrado e o Profano. Ao invés de se ver no arraial um tempo diferente da missa e da procissão, quanto de sagrado é atribuído valorativamente a esse momento que mais não é que a herança pagã, do campo do dionisíaco, do tempo da festa, do excesso, do banquete em que se alimentavam aos limites do possível os corpos que durante tanto tempo minguavam em prazeres da abundância?

Se quisermos, e apenas estamos a ser honestos se o fizermos, quanto de similitude podemos ver entre a eucaristia católica que ocorre na manhã na aldeia, a metáfora teológica da refeição de Jesus que resulta no momento de banquete e de partilha, e a noite onde esse mesmo banquete rasga as fronteiras do rito disciplinado e se espraia na festa, nos leilões de fogaças, nos comes-e-bebes que alegram toda a comunidade e que, na linguagem de Homero, resulta no “banquete em que todos são iguais”?

É que é aí que se encontra a magia que faz com que, apesar dos anos e anos de afastamento, se continue a fazer com que o Agosto seja, para migrantes no estrangeiro ou para os que ficaram cá dentro, nas periferias das grandes cidades, o momento de regressar à sua “terra”, ao seu ecossistema de identidade coesa, ao seu mundo onde recriam os gestos e os ritos dos seus ancestrais.

Enchem-se as ruas de flores de papel como imagem da fertilidade desejada. Leiloam-se víveres e singelas oferendas como reflexo da riqueza que se quer manter. Pela noite dentro se dança como sinónimo da vitalidade de um Verão que não se quer perder. Pela mesma noite dentro se bebe na senda de uma alegria que se quer eterna, festiva e companheira.

São assim as festividades que raramente levam os visitantes de uma aldeia a saber exactamente em honra de que santo se festeja. Quantas vezes terá assistido a festas semelhantes o fundamentalista Martinho de Dume, bispo de Braga, que em pleno século VI da nossa era escrevia o livro Da Correcção aos Rústicos, vociferando contra o facto de tantas festividades supostamente cristãs serem a capa da manutenção de festas pagãs?

O tempo dos ritos e das crenças é esse mesmo, o da manutenção, mesmo que mascarada, do que vem do passado, da tradição. Assim, tanto sabor a politeísmo e a paganismo encontramos nas festas que se multiplicam neste Agosto que agora se vai esvaindo por entre os dias derradeiros do mês. Mas isso não torna a parte não dominada pelos ritos cristãos menos nobre ou digna.

A principal ferramenta de cristianização recente foi essa pretensa imagem de que há uma festa profana ao lado da sagrada. Nada de mais errado. Para as gentes, a dita festa profana é, muitas vezes, mais sagrada que a eclesiástica. Mas mais, em termos de vivência religiosa, não só a dita festa profana é mais antiga, mais de acordo com o sentir e o viver das populações, como coloca todos os participantes num patamar de maior igualdade que a supostamente sagrada; nesta há efectiva comunhão com quebra de preconceitos.

Onde termina o sagrado e o profano? Na minha leitura não tenho muito para hesitar: ambas são sagradas, mas uma afirma a sacralidade natural de todo um povo; a outra elege hierarquias e cria distâncias. Talvez seja por aqui que o Papa Francisco tenta redefinir o lugar da participação de todos os crentes, longe dos estigmas, das exclusões e das excomunhões que marcaram por séculos a relação do cristianismo com o seu povo.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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