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Fátima. 2015. A necessidade deste texto

Há quase dois anos, tive a oportunidade de estar em Fátima num dia 12 de Maio, à noite, na famosa e impresionante Procissão das Velas. Já tinha ido várias vezes a Fátima, mas era a minha primeira visita em dia de enchente. E, se as espectativas eram altas, a realidade conseguiu superá-las. Aquela mole imensa de gente, as luzes das velas, o movimento do andor, resultou em imagens que nunca mais abandonarão o meu olhar de tão fortes que eram.

Mas o momento que mais me marcou não foi esse, o do visionar a escala de humanidade. Terminada a procissão, a maior parte dos peregrinos começa a debandar do recinto, não ficando para a missa. Parado, nas faldas da multidão, começo a ser envolvido pela torrente das gentes em regresso.

A princípio fico espantado. Mas depois o espanto dá lugar a algo de mais profundo, ou indizível por incerto ou desconcertante. Toda aquela gente, depois de horas à espera do momento especial da procissão, regressa com um semblante carregado, triste, totalmente diferente do que eu imaginara.

Na minha concepção, no meu pré-conceito, via todo o ritual como uma catarse após a qual se dava como que um renascimento, uma vivificação através de um sentimento positivo que invadiria o crente. Mas não, era o rosto da tristeza o que eu via nas centenas de pessoas que me rodeavam nesse regresso aos carros.

O meu espanto terminou quando, terminada a procissão, um Cardeal inicia a missa. Na sua voz pausada, serena, profere várias frases onde se pede aos crentes que assumam que são pecadores. Nesse momento compreendi que a ida a Fátima pouco ou nada tem de libertador. A religiosidade em torno das aparições centra-se na dimensão da culpa, do pecado a que a Humanidade não poderá fugir, porque é parte da sua condição. Em Fátima assume-se essa condição de pecador.

Aspectos fundantes

Apesar de escassamente presente nas narrativas dos evangelhos canónicos, a figura de Maria, mãe de Jesus, ganhou destaque teológico desde muito cedo, num quase consolo maternal à dureza de uma teologia que via pecado em tudo. Não se tratou de uma oposição à visão teleológica do fim dos tempos, mas sim de uma compensação, de uma necessidade dos crentes terem uma figura, qual mãe, que os proteja e acolha no tempo presente, não se conformando apenas com uma recompensa no momento final.

Lucas, possivelmente próximo de Paulo, materializava no seu Evangelho a possibilidade hermenêutica de Maria ter um lugar de destaque nas definições teológicas e pastorais em torno do pecado e da culpa. Na chamada Visitação, Isabel afirma perante Maria o célebre Magnificat, “Bendita és tu entre as mulheres, bendito o fruto do teu ventre”, abrindo a porta a uma valorização única do facto de Maria transportar no seu útero o futuro salvador. Já no final do século I, com o Cristianismo cada vez mais centrado na teologia de Paulo e na ressurreição, o Apocalipse dito de João abria, no binómio Maria-Jesus, a possibilidade da mãe de Jesus ter um papel ainda mais fundamental na teologia cristã ao ser apresentada como aquela que possibilita a vinda do Messias ao mundo, aquela que encerrará o ciclo de falha iniciado por Eva.

Se a vida era, inevitavelmente, o resultado do pecado original, tornando a Humanidade numa irreversível perdição, Maria dava alento aos crentes mostrando-lhes que ao pecado de Eva correspondia o fruto do ventre da anti-Eva, o Jesus nascido de Maria.

Logo no século II, seguindo o referido Magnificat, surgiria a oração:  Sub tuum praesidium confugimos […]: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó virgem gloriosa e bendita. Amém”.

A chamada Avé Maria, uma das mais populares e rezadas orações cristãs, consolidava a função de Maria como aquela que intercede junto de Deus, quando os crentes dizem: “[…] Rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.”

Em metamorfoses ainda significativas, Maria percorre este tempo longo da História do Cristianismo sempre como um continente de valoração único e constantemente recriado e usado na relação entre a Igreja de Roma e os seus membros, quase sempre como imagem didática da possibilidade de superação do pecado original. Pela pureza, Maria é o anti-pecado mas, por isso mesmo, um modelo inatingível.

O contexto

Num quadro em que o culto mariano tem um peso muito forte, o que religiosamente se apresenta nas aparições de Nossa Senhora em 1917 merece a nossa atenção em vários planos. Por um lado, teremos tudo o que nos remete para o aprofundar de uma espiritualidade herdada e consolidada em torno do pecado, das falhas para com Deus, da necessidade da penitência. Por outro, temos, sem sombra de dúvida, o enquadramento histórico que nos dá a semântica da linguagem das aparições e que justifica, em muito, a forma como estas suscitaram uma adesão tão significativa e tão rápida ao fenómeno, especialmente em torno da guerra.

E em ambos os casos, mais que a realidade, as representações e os anseios colectivos devem ter tido um papel fundamental na génese e evolução do fenómeno. Menos de uma semana antes, no dia 5 de maio, o papa Bento XV pedia às crianças que rezassem à Virgem Santíssima pedindo a paz; nesse dia 5 de maio, entre outras medidas, Bento XV escreveu ao seu secretário de Estado nos seguintes moldes: «Queremos que, mais do que nunca, se volte viva e confiante para a Augusta Mãe de Deus a imploração dos seus filhos aflitíssimos. Em consequência, encarregamos V. E. de fazer conhecer ao Episcopado do mundo inteiro o Nosso ardente desejo de que se recorra ao Coração de Jesus, trono de graças, e que a esse trono se recorra por meio de Maria.» O papa fixava, ainda, para o primeiro dia de junho a introdução da invocação «Rainha da Paz, rogai por nós» na ladainha lauretana, dando ainda mais espessura a um sentido dramático em torno do culto mariano.

No próprio dia da aparição na Cova da Iria, celebrou-se a chamada «missa das almas» na igreja paroquial de Fátima, à qual assistiram os futuros videntes, tendo o pároco, padre Manuel Marques Ferreira, pedido «para rezarem o terço pelos soldados» – um dos quais, Manuel, meio-irmão de Francisco e de Jacinta, tinha partido para Cabo Verde no ano anterior. No princípio do ano, a 30 de janeiro, seguiram para França os primeiros soldados portugueses, tendo falecido o primeiro a 4 de abril, pouco mais de um mês antes da primeira aparição.

Era este o contexto político e religioso dos pastorinhos. Este é o contexto das aparições, o centro do fenómeno religioso que foi sendo atualizado à medida que os desafios do mundo se alteraram. Sem dúvida, será pela marca da guerra que a mensagem de Fátima se afirmará; não só no que respeita à Grande Guerra, mas também na profecia de outros embates bélicos. Na descodificação processual da mensagem de Fátima, a referência ao regime soviético, relacionando o seu fim com a conversão, será central na ideia de paz, culminando na própria imagética de João Paulo II e do Terceiro Segredo.

A mensagem das aparições

Desde o primeiríssimo momento que o pecado é o centro da dinâmica e da mensagem de Fátima. Mesmo antes das aparições da Virgem, já a questão da penintência ganhara uma centralidade imensa. Na aparição do Anjo da Paz (Primavera de 1916), a oração que este pede às crianças para rezar tem uma carga fortíssima na responsabilidade dos infantes poderem arcar com as culpas de toda uma mole imensa de gente descrente:

“[…] Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos. Peço-vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam, e não vos amam”.

Poucos meses depois, aquando de nova aparição, o mesmo anjo torna-se mais claro na indicação do que os pastorinhos devem fazer. O peso é sempre colocado no pecado como o grande male de toda a Humanidade. A simples crianças é pedido para suportar todas as provações:

“– Que fazeis? Orai! Orai muito! Os Corações de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios.
– Como nos havemos de sacrificar? [pergunta Lúcia]
– De tudo que puderdes, oferecei um sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores […] Sobretudo aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar.”

Num crescendo, na terceira aparição do anjo, é reforçada esta relação entre o pecado e a penitência. Nessa aparição, o anjo dá-lhes eucaristia e, nesse momento, afirma:

“– Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.”

A primeira aparição de N. Sra. irá aprofundar ainda mais o espírito de sofrimento, criando uma alinaça, um compromisso, entre um ser divino e três crianças. Culminando o breve diálogo relatado por Lúcia, é-lhes pedido pela Virgem:

“– Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?
– Sim, queremos!
– Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.”

A tónica estava criada e consolidada. Nunca mais Fátima acolheria uma mensagem de alegria. Seria sempre o sofrimento a matéria-prima desta fé.

Na terceira aparição, Maria reforça a vocação dos pastorinhos colocando cada vez mais uma carga imensa nos seus ombros:

“Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes e em especial quando fizerdes alguns sacrifícios: «Ó Jesus, é por Vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria.»”.

Ainda nesta aparição, e num sentido altamente didático, a Virgem provoca a visão do inferno:

“O reflexo pareceu penetrar a terra e vimos como que um grande mar de fogo. Mergulhados em esse fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo […]

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz […]”

*

Cem anos depois, poderemos dizer que Fátima já sofreu diversas actualizações, como é natural em qualquer estrutura religiosa inserida numa sociedade e numa cultura. Contudo, a marca eventualmente mais forte continua a encontrar-se nesta centralidade do pecado e da penitência.  É o que vemos nos cânticos, na dimensão de vivência popular da comunidade.

Mas o mais significativo encontra-sena forma como o pecado é trazido para a narrativa da fé. O pecado é algo como que intrinsecamente insuperável; próprio da natureza humana, da sua condição.

O crente em Fátima afirma-se como pecador e toma consciência disso. Assume essa sua condição.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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