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E se Jesus viesse à escola?

Do «professor», que é quem “professa”, transformando-se essa profissão em missão; que se transforma, se for um bom professor, em «mestre», até com «discípulos», qual líder religioso; à «cadeira» que ele lecciona e que corresponde a um lugar na hierarquia, a «cátedra», o lugar onde tem assento esse que “professou”, seja ele ou o bispo que reside e se senta na «catedral»; passando pelo que profere esse digno «mestre» na sua alocução máxima, a «oração» de sapiensia, nada parece escapar à herança religiosa no universo escolar.

Contudo, e como as palavras nos escapam pelos ouvidos sem que delas demos conta, hoje olhamos para o actual modelo escolar como se ele tivesse todo o tempo do mundo, sendo que, nessa sua forma actual, ele foi inventado há cerca de dois séculos, um muito-pouco-tempo na espessura da nossa civilização, tendo ido buscar ao modelo cristão o léxico que hoje em nada nos soa religioso. É que, de facto, as grandes estruturas de pensamento movem-se numa diacronia que não assenta no correr rápido dos anos ou das décadas, mas sim nos séculos longos em que as palavras das línguas vão ganhando matizes e recriando significados. Essa é a velocidade das estruturas de pensamento, das mentalidades.

E é nessa velocidade que a escola, por mais laica que ela nos pareça, é recorrentemente um lugar desejado pelo universo das religiões. E é-o pelo simples facto de que as religiões são mensagens e as mensagens são para transmitir, para resultar em ensinamento. Religião é comunicação e, por isso, é ensino.

E neste coincidente sentido, o da escola e o do religioso, o espaço da comunicação de saberes é o espaço, por excelência, para que se percebam todas as tensões e todas as coexistências entre ambos. A escola é, oficializada e tornada obrigatória, o mais importante normativador da nossa civilização. O que se veicula na escola é aquilo que enquanto colectivo achamos ser o fundamental da nossa identidade e da formação que queremos dar às futuras gerações. Sim, é como se de um “saber oficial” se tratasse.

Sendo o terreno por excelência da transmissão de conhecimento e de identidade, a religião não poderia estar fora dele. E nunca o estaria porque muitas temáticas tratadas na sala de aula se cruzam com aspectos religiosos. Mas cruzam-se ainda porque herdámos uma tradição muito forte de as religiões terem, de facto, um espaço escolar de ensino.

Assim se tem passado em Portugal ao longo do período democrático, não se tendo entrado em ruptura com a herança do Estado Novo. A uma disciplina obrigatória formulada e leccionada pela Igreja Católica, o regime democrático apenas acrescentou a sua não obrigatoriedade, primeiro, e estendeu, depois, essa possibilidade escolarizada a outras confissões.

De forma bem diferente, muito da restante Europa seguiu outros caminhos na viragem de século. Não só a erosão das identidades religiosas tradicionais levou a que deixasse de fazer sentido um monolitismo religioso na escola, como a própria diversidade crescente do tecido social fortaleceu a necessidade de se abandonar um paradigma de claro favorecimento das confissões que conseguiam ter meios para tomar conta dessa prorrogativa de ter um espaço lectivo na escola dedicado aos seus crentes.

A multiplicidade religiosa que se generalizou na Europa levou a que se equacionasse um campo de saberes plurais que ajudassem os alunos a compreender o seu mundo e não apenas a fortalecer a sua identidade religiosa. Mais, o modelo confessional nem sequer já é significativamente válido para as religiões e confissões maioritárias na medida em que se tornaram diminutos os valores de adesão a essas turmas de natureza confessional – situação que hoje se passa em Portugal.

A esta transformação da realidade interna se juntou o olhar internacional e os desafios que a política e os média constantemente lançam sobre os nossos jovens através de um crescendo de tensão em torno do radicalismo religioso e do terrorismo. A religião é hoje omnipresente nas produções televisivas, trate-se de ficção ou de documentário ou jornalismo.

Numa sociedade plural, livre e que fomente o respeito pela diferença, possibilitando aos seus cidadãos uma tomada de decisão assente em visões de rigor, implica um regresso à escola. Longe do modelo português, hoje muitos países desenvolveram modelos de ensino em que a diversidade religiosa e as múltiplas dimensões da religião e da espiritualidade são levados aos alunos sem sentido confessional, mas como parte de uma formação integral de cidadania.

Seguindo esta necessidade cada vez mais consensual na nossa sociedade, acaba de lançar um projecto pedagógico e cívico destinado a fornecer ao universo escolar materiais e debates que enriqueçam os nossos educandos com uma visão plural e complexa desse fenómeno sem o qual é impossível compreender o nosso mundo, seja-se religioso ou não.

Parte fundamental desse projecto é a formulação de uma disciplina sobre «Religiões do Mundo» que será já no próximo ano lectivo, levada à sala de aula na escola Os Aprendizes, em Cascais. Com esta disciplina pretende-se, não apenas fornecer aos alunos os elementos, os conhecimentos, sobre religião, mas também abrir as portas da sua vida às dimensões de espiritualidade que tão afastadas se encontram das prioridades num mundo onde os valores parecem plenamente secundarizados.

E, exactamente, neste sentido, mais que “dar matéria”, mais que uma História das Religiões, esta cadeira de «Religiões do Mundo» irá ajudar os educandos a compreender as dimensões interiores do fenómeno religioso enquanto dimensão essencial na definição do Homem na maioria das culturas, fomentando um lado experiencial no contacto com as religiões e as espiritualidades. Sim, porque conhecer as religiões, num sentido positivo, não basta. É necessário compreender o valor das suas dimensões espirituais, a chave para se aceder ao que, de facto, distingue a religião de outra qualquer actividade de pendor meramente social.

Neste sentido, a transversalidade deve ser o principal elemento desta equação. Todos os jovens carecem de formação sobre religiões e espiritualidades. Sejam de famílias religiosas, ou não. Porque mesmo para os jovens com formação e prática religiosa, um âmbito disciplinar como o apresentado leva a um melhor conhecimento das especificidades da sua fé e a um respeito pelas fés diferentes.

Não pode ser de simples saber livresco que se fundamente este campo disciplinar. Ao falar de Liberdade, Fernando Pessoa dizia sobre Jesus que não “consta que tivesse biblioteca”. É verdadeiramente aqui que reside o cerne: não é só com livros que se consegue conhecer. A palavra francesa ajuda-nos a perceber melhor o que está em jogo: connaître = con+naitre, “nascer com”. Só se conhece se, de alguma forma, se nascer com aquele que se pretende conhecer.

Neste final de ano lectivo, esperamos que este seja um primeiro passo, dado de forma inovadora e pioneira, para que aos nossos alunos chegue um conhecimento isento, fomentado no respeito pelo outro, e que nos permita ter uma cidadania mais activa e esclarecida.

Que mais escolas se juntem a este projecto-piloto!

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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