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De repente

De repente entre a montanha de papéis que guardo descubro um caderno que fazia parte do meu diário de adolescente. Tinha 14 anos.

Peguei nele como se tratasse de uma relíquia com o cuidado de quem quase não ousa tocar.

A personagem que desfilava nas folhas do caderno surgia-me à distancia de uma galáxia. E eu lia como se lê um livro de que desconhecemos o autor. Não me parecia eu ou talvez parecesse mas vestida da inocência e ingenuidade que o tempo me levou a perder.

A certa altura há uma pagina que me concentra. Não era passado: seria uma menina nos dias de hoje a relatar algo que não tem calendário. Vou colar aqui e digam-me se tantos anos depois o passado não se veste do hoje: “…meu pai ontem discutiu imenso com o P, falavam de impostos e de corrupção e o P dizia que os tipos do governo eram uns gatunos, sempre a dar tachos e a receber dinheiro da CEE para esbanjarem. Meu pai dizia que era para formação e o P chamou-lhe parvo por acreditar que era só para isso. Desisti de os ouvir, a política chateia-me, passam a vida a dizer as mesmas coisas e eu nem sempre espevito a minha curiosidade. A minha mãe anda com olheiras e voltaram as enxaquecas, acho que precisava de ir ao médico mas teima em colocar gelo na testa e a deitar-se à espera que o sono venha. Olha-me com piedade quando eu digo que me dói a cabeça. Ela pensa que herdei aquilo e acho que tem razão. Tento não me enervar mas é difícil. Na escola ando com os nervos à flor da pele. A parva da C foi contar ao A que eu gosto dele. Ele passou por mim no corredor dos cacifos ontem à hora do almoço e eu morri. Fiquei toda corada porque ele olhou-me e sorriu e eu acho que o sorriso dele era de gozo. Só me apeteceu estrafegar a estúpida da C. Deixei de lhe falar nas aulas e ela anda chateada. Acho que tenho de esquecer o A. Ele nunca vem falar comigo. Hoje houve bronca logo de manhã com o R. Começou a chamar nomes ao L dentro da aula e a professora de português mandou-o calar. Ele levantou-se e mandou-a calar a ela. A aula é que se calou à espera da resposta dela. Ficamos todos parvos quando ela saiu da aula a chorar e bateu com a porta. Não a vimos mais nessa manhã. Fiquei com imensa pena dela. O R é um idiota que tem a mania que pode tudo só porque o pai é rico. Não o suporto. A contínua veio dizer-nos que ficássemos na aula até ao intervalo. Ficou tudo doido e o R e o L andaram à chapada. Enfim. Acho que o L também não gosta de mim. Um dia perguntou-me se eu já f… e eu chamei-lhe idiota. Ainda por cima à saída para o almoço ele estava a conversar com o A e a rirem-se. Nem sei se me viram mas ando uma pilha de nervos. Não gosto nada de ser gozada. A minha mãe chegou agora das compras. Noto nela que a dor abrandou mas começou logo a dizer que era impossível que tenham aumentado de um dia para o outro o preço das coisas. Até no arroz, exclama indignada. Tenho trabalho de História para fazer e não me apetece nada. Só penso na forma como vou esquecer o A e esquecer a estúpida da C que foi traidora e agora anda atrás de mim pedindo desculpa. Até me quis oferecer um cigarro como se eu gostasse daquela porcaria”.

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