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Das memórias distantes do colectivo a quando um próximo é vítima de terrorismo

“O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hiram, filho de uma viúva […]. Hiram era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. […] Hiram levantou as colunas no pórtico do templo; a coluna direita, que chamou Jaquin, e a esquerda, que chamou Boaz.”

1 Reis 7

Nos últimos dias recebi duas notícias que em muito podem mudar a percepção, quer de alguns de nós, quer de mim mesmo. Soubemos que um nosso concidadão morreu no ataque terrorista a um hotel no Burkina Faso. Já foi muito mais próximo de nós. Mas eu recebi uma notícia que me marcou ainda mais.

Há cerca de dez anos conheci o rabi Boaz Pash, então o responsável religioso da comunidade judaica de Lisboa. Tive contacto com ele no âmbito de um projecto de diálogo inter-religioso. A empatia foi imediata. Com nome colhido numa das duas colunas do Templo de Salomão, Boaz conseguia juntar a tão rara sabedoria com uma humildade desconcertante.

Não hesito em dizer que o convívio com o rabi Boaz Pash me enriqueceu imensamente, tendo conhecido um dos mais profundos conhecedores do judaísmo, um homem com uma cultura religiosa esmagadora, mas um ser humano que geria essa sua sabedoria como quem respira, com toda a naturalidade a repartia com os outros nos mais pequenos gestos.

Na recta final desse projecto, Boaz adoeceu gravemente. E foi nesse contexto que a nossa proximidade se realizou de uma forma muito significativa. A dor sempre nos transporta para pontos de reflexão existencialista especiais. Já distante, em Cracóvia, salvo erro, para onde foi como grão-rabi, Boaz deu notícias, mostrou a sua finitude num misto de temor humano perante a vertigem da possibilidade de um fim, com uma serenidade só possível a quem tem acesso ou é detentor de uma sabedoria que foge aos constrangimentos do aqui e agora. Nos últimos anos, muitas vezes eu regressei a um e-mail em que ele pedia, na máxima fraternidade que posso conceber, sem saber se eu era, sequer, religioso, que eu me lembrasse dele na minha relação com o que de transcendente eu acreditasse e concebesse.

Sim, muitas vezes me lembrei dele. Mas por estes dias mais ainda o tive nos meus pensamentos. Infelizmente, nos primeiros dias de Janeiro, Boaz Pash foi alvo de um atentado terrorista como muitos o têm sido em Israel: foi atacado com uma arma branca. A arma não o chegou a perfurar significativamente, pois, irónica e felizmente, o bico da arma ter-se-á dobrado com o golpe.

Para mim e para vários amigos que em Lisboa deixou, foi um duro golpe. Das notícias distantes dos telejornais, a minha mente era catapultada para uma memória das mais queridas e significativas. De espectador passei a comprometido. De receptor de informação, transformei-me em criador de sensações, de dor e de anseios.

Na imagem que na minha mente eu construí do que entendo como Sabedoria em sentido bíblico, dei por mim a questionar-me exactamente sobre o valor do evento no contexto do grande mar de eventos, em que apenas um tolheu o meu olhar e mereceu sentimentos mais profundos.

Onde estão os nossos limites civilizacionais perante a violência, perante os atropelos à dignidade? Precisaremos, todos e cada um de nós, de ver morrer ou ser ferido um próximo para acordar e dar significado a coisas tão universais mas ainda mais banalizadas? Onde vai o nosso desapego aos valores que apenas deixamos de relativizar os princípios se eles nos afectam directamente?

Hoje, no pino de um inverno que na Europa coincide com muitas incertezas sobre o projecto europeu e mais ainda sobre todo o posicionamento no Mundo Mediterrânico, precisamos de descer, quer da apatia e da banalização da violência a que chegámos, quer da dor que consome os que directamente foram apanhados nas lutas fratricidas que nos corroem, e perceber como, de forma pragmática, aprendemos a viver conjuntamente numa sociedade que já não é o que foi nem sabemos o que será.

A única coisa certa é que a mudança já teve lugar, vai continuar a ocorrer, é imparável. Não sabemos como as sociedades se vão comportar, muito menos como os líderes europeus vão gerir as situações e os confrontos. Mas precisamos todos de um nosso amigo ferido para perceber que temos de agir. Com sentimentos e com pragmatismo, mas temos de deixar de ser apenas telespectadores. A violência e os atropelos ao que temos como civilização não pode entrar mais no campo da banalização, sob risco de se ser conivente no silêncio.

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