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Crónicas da vida real: envelhecer em solidão (parte 2)

E é ali naquela cadeira de encosto, confortável, que o senhor Mário passa a maior parte do tempo de olhos postos numa porta onde raramente entra alguém, e quando entra já vem com pressa de sair.

E o senhor Mário, porque não quer atrapalhar a vida do filho, resignadamente força uma espécie de sorriso e diz-lhe para o tranquilizar, e libertar ao mesmo tempo, “Vai, vai meu filho, não atrases a tua vida.”

E o filho, sempre tão ocupado, deixa que os barulhos da mente ensurdeçam a voz da consciência e da culpa, dá uma olhada pela casa certificando-se que tudo fica em segurança, ajeita-lhe o casaco, a cadeira de encosto, dá-lhe um beijo na testa, afaga por escassos segundos o Preguiçoso que dorme alheio a tudo e a todos no colo do velhote, e vai-se embora, não sem antes, da soleira da porta, porque gosta do pai, e porque os barulhos da mente nem sempre encobrem ou abafam tudo, apenas disfarçam, e diz-lhe, “O paizinho fica bem? Tem aí uma cadeira toda confortável, o Preguiçoso a fazer-lhe companhia…” E acaba por bater a porta levando consigo metade do constrangimento e deixando a outra metade a pairar do lado de dentro da porta.

A cadeira é de facto confortável. Nisso o filho não se enganou. Tão confortável quanto solitária. E ao preguiçoso bem podiam chamar-lhe o come e dorme… e dali mais nada se leva a não ser o poder da mente que também ela vai perdendo poder porque se transforma antes numa máquina de sonhar.
E enquanto que o constrangimento fica ali a balouçar do lado de dentro da porta, também ele constrangido sem saber para onde tombar, o senhor Mário ali fica. A envelhecer a cada dia, a cada minuto que passa, alimentado por uma dose de solidão e a desistir aos poucos da vida.

A cadeira de encosto é de facto confortável e o Preguiçoso faz-lhe companhia. Apercebe-se disso a maior parte das vezes pelo peso que lhe faz no colo, o calor do seu corpo peludo que lhe aquece as coxas, e o constante ronronar. Não fosse gato e achava-se que sofria de uma canseira… (aquela canseira…) que revelaria uma séria preocupação nos pulmões e nas vias respiratórias. Canseira… Quase parece uma contradição, para um gato em que o maior esforço que faz é saltar do colo do senhor Mário para ir comer, ou para dar uma fugida à rua escapulindo pelo buraco ao fundo da porta, por onde sai para se ir aliviar. Também ele envelhece em solidão com certeza.

E é ali naquela cadeira de encosto, confortável, que o senhor Mário passa a maior parte do tempo de olhos postos numa porta onde raramente entra alguém, e quando entra já vem com pressa de sair. E fica de olhos postos nessa porta por onde saiu a alegria de viver, os risos animados de outros tempos, os burburinhos de vozes em noites de animada conversa, os amigos, a sua esposa, que partiram numa viagem sem regresso. Pequenas coisas da vida e o senhor Mário a perceber agora que essas pequenas coisas eram afinal as grandes.

E um dia o senhor Mário ligou a boca do fogão, mas esqueceu-se de ligar a chama.

Depois sentou-se na confortável cadeira de encosto e fechou os olhos.

Pela primeira vez em muito tempo o Preguiçoso levantou-se quase de rompão, marrou com a cabeça no peito do senhor Mário como que a chamá-lo, e ficou irrequieto. Sem sequer abrir os olhos, o senhor Mário afagou-lhe o cachaço por uns segundos e de seguida deu-lhe umas palmadas, sem maldade, sem violência, talvez qualquer coisa entre o delicado e determinado, como quem diz, “Vai-te embora, eu fico bem.”

Era incrível a maneira que estes dois tinham em se entenderem quase sem palavras.

O Preguiçoso saltou do seu colo e saiu pelo buraco da porta, que era a sua porta. Ao sair, a cortina de borracha fina, que empurrou com a cabeça, fechou-se atrás do seu rabo.

Depois o senhor Mário começou a sentir-se pesado, com imenso sono, ao mesmo tempo que uma irritabilidade lhe percorria estranhamente o corpo, com uma espécie de ardor na boca e na garganta. Mas foi por muito pouco tempo. Ao mesmo tempo que se ia entregando ao seu sono que ganhava uma força sem limites, a irritação no corpo foi desaparecendo. O senhor Mário sentiu-se leve, inexplicavelmente tranquilo, pacificamente confortável. Então o senhor Mário levantou-se tranquilamente da confortável cadeira de encosto, deixando lá o corpo onde habitou por cerca de 82 anos.

Ao longe uma espécie de silhueta caminhava pacificamente na sua direção. À medida que se aproximava e os contornos começavam a ganhar forma visível, o senhor Mário foi tendo cada vez mais certezas de quem caminhava ao seu encontro. Depois rasgou um sorriso que foi de encontro a um outro sorriso que agora sim, estava junto de si. A sua amada esposa. Ela pegou-lhe na mão e levou-o consigo…

Finalmente o senhor Mário não estava mais em solidão (…)

(Continua)

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