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Cristiane Paoli-Quito: o teatro da inquietação

Dramaturga, diretora teatral e professora da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP), Cristiane Paoli-Quito, em mais de três décadas dedicadas ao teatro, tem-se destacado pela fusão de linguagens que vão da commedia dell’arte à dança, passando pelo circo.

Em 1986 abandonou a advocacia para viver integralmente de teatro e de lá para cá dirigiu algumas dezenas de espetáculos consagrados pelo público e pela crítica, como Escorial, Prometeu Acorrentado, Prelúdico para Clowns e Guitarra, Uma Rapsódia de Personagens Extravagantes, Acordei Pensando em Bombas, O Rei de Copas, Paranapiacaba, – de Onde se Avista o Mar, Aldeotas, Circo Trilho, Mitos e Paixões, Poetas ao Pé d’Ouvido, Quadri Matzi, Histórias de Alexandre e LadiEx.

Você se formou em direito e atuou como advogada por quatro anos. Como se deu a ruptura com o universo jurídico e o encontro com o teatro?

Comecei fazer teatro aos 17 anos, ou seja, o teatro veio antes que o direito. Naquela época, eu achava que seria atriz e não existiam escolas de teatro, faculdades de teatro para uma formação de terceiro grau. Na ECA (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) existia, mas não para atuação. E minha família pediu que eu continuasse a fazer teatro, mas focasse em uma formação de terceiro grau, que, aliás, foi muito útil, quando prestei concurso para ser professora da Escola de Arte Dramática. De qualquer forma, fiz direito e até me entusiasmei, mas com o teatro sempre em paralelo. E houve um momento em que tive de fazer escolhas e romper fortemente com tudo. Tive, inclusive, que sair do país para que pudesse haver ruptura total. Então, fui para a Inglaterra. Chegando lá, o que me interessava não era somente o teatro, mas também reconhecer quem eu era, o que eu desejava fazer e como desejava fazer. Saí do Brasil para que pudesse me reconhecer como pessoa e figura profissional.

A commedia dell’arte esteve no centro das primeiras produções que dirigiu. Isto deveu-se a alguma influência especial?

Enquanto eu fazia direito, a minha atuação no teatro ficou um pouco menor, sem intensidade. Eu me tornei um pouco produtora. Criei uma pequena empresa e resolvi produzir. Conheci um diretor italiano, Francesco Zigrino, que veio trabalhar aqui no Brasil e produzi um espetáculo infantil, Pinóquio, que me foi uma grata surpresa, de aprendizado como produtora e como pensadora de teatro. Ele me fez abrir muito meu modo de pensar o teatro infantil. Eu não fiz EAD como formação, mas conhecia e era amiga de várias pessoas de lá. O Francesco veio dirigir na EAD e me convidou para participar de uma commedia dell’arte, que deveria ser feita só por mulheres. Chamava-se O Arranca Dentes . Depois que ele foi embora do Brasil, tomamos a liberdade, junto com o Tiche Vianna, de remodelar o espetáculo. Foi um momento muito feliz trazer o espetáculo para nossa brasilidade. O espetáculo tinha duas horas e nós o reduzimos para pouco mais de uma hora.

Entre seus trabalhos iniciais, encontramos o teatro de bonecos. Por que razão trazer os bonecos para a cena?

O trabalho com bonecos veio através de uma parceria com o grupo A Cidade Muda, bastante pontual na minha vida. Na verdade, minha contribuição para esse trabalho veio da commedia dell’arte, ou seja, com as máscaras. Fiz uma aproximação do trabalho de máscaras com o trabalho de bonecos e trouxe a possibilidade de sair da caixa preta pequena, pois eles usavam caixinhas pretas, de bonecos pequenos. Eu trouxe a abertura para fazer o trabalho de bonecos em um palco grande, aberto, com os manipuladores aparentes, dialogando e se relacionando com os bonecos diretamente. Naquela época, isso não era muito usual na Europa. Portanto, minha contribuição para o teatro de bonecos foi como encenadora, como diretora, em parceria com grandes bonequeiros que me ensinaram muito, no sentido da transposição da expressão do universo humano em relação aos bonecos e aos objetos. Confesso que uma das coisas que mais me encantavam era ver pessoas com idade mais adulta brincando com os bonecos, brincando com os objetos e dando vida a eles. Essa relação com nossa criança interior, a liberdade do lúdico e da imaginação é algo que realmente está em meus processos e me encanta muito.

Como se deu a experiência com o Circo Mínimo, que resultou numa releitura de Prometeu, nos anos 1990?

A minha experiência com o grupo A Cidade Muda, com seu fundador, Rodrigo Matheus, é uma relação de muitos anos, desde meu início de teatro, aos 17 anos, na escola Logos, onde fiz o segundo grau e comecei a fazer teatro. O Rodrigo sempre teve ligação com o circo. Acredito que os anos 70, 80 tenham sido muito impactantes e fortes no que diz respeito ao chamado circo novo, com uma estrutura diferenciada de circo. No começo dos anos 90, quando o Rodrigo voltou da Inglaterra, onde havíamos estado durante dois anos juntos, houve a necessidade de pensar esse circo, de como usá-lo de forma diferenciada no teatro. E o Rodrigo adaptou de maneira brilhante Prometeu e nós chamamos de Prometeu Acorrentado. Foi um desafio enorme fazer o ator ficar tanto tempo pendurado. As pernas dele ficavam amarradas, exigindo muita força física. Foi um trabalho bastante intenso. Na época, pode ter causado estranheza, mas também causou muito impacto. Até hoje, Rodrigo apresenta esse trabalho. Há pouco, ele o apresentou na Oficina Oswald de Andrade.

Ainda nos anos 1990, o universo clownesco passa a fazer parte de seus trabalhos, numa busca incessante de experiências com novas linguagens. Pode nos falar um pouco sobre ele?

Quando retorno ao Brasil, no começo de 1990, o palhaço era a linguagem com que eu estava encantada. Em Mitos e Paixões, de 1993, a tragédia humana é tratada de uma forma enviesada, na perspectiva de um palhaço. Tem ali um lugar onde o mundo toma vantagem em cima do ser humano. Tudo é maior que o ser humano, na perspectiva do palhaço. A tragédia é uma situação de falha humana. O encontro de linguagens foi um trabalho irregular, mas com pontos muito interessantes. Ele foi fundamental para o meu crescimento como diretora, pesquisadora e investigadora de teatro, pois lidar com coisas que tem uma comunicação mais imediata é mais fácil do que lidar com algo que você fique buscando quais foram os equívocos ou falhas que aconteceram no meio do caminho. Essas pesquisas me fizeram compreender que o palhaço poderia perpassar o drama, que foi o caso do espetáculo Quadri Matzi um espetáculo puro de palhaços, mas com o drama presente. O palhaço se faz no jogo com o erro e isso liberta muito e permite que possamos ter uma condição maior de acertos e erros.

Como foi o encontro com a dança, que resultou numa série de espetáculos, a partir de Acordei Pensando em Bombas?

O encontro com a dança foi um desejo profundo, a partir de um espetáculo de Pina Bausch, Os Cravos, onde desejei profundamente fazer dança, mas achava que estava velha para isso, que meu tempo havia passado. Porém, a vida foi generosa e colocou o Estúdio Nova Dança em meu caminho, através de sua fundadora, Tica Lemos. O encontro com essas mulheres da dança, Adriana Grechi, Thelma Bonavita, Lu Favoretto e Tica Lemos realmente fez com que eu pudesse desenvolver um novo aspecto do meu olhar artístico, além do teatro. Eu já havia trabalhado com Neide Neves, mas meu contato com o Estúdio Nova Dança fez com que eu estudasse e pesquisasse dança profundamente, que eu convivesse, visse, olhasse, tivesse oportunidade de respirar dança 24 horas por dia. A ponte entre teatro e dança foi fundamental para a transformação do meu trabalho e o aprofundamento de minhas pesquisas tanto em teatro-dança, como dança-teatro, que é a linguagem que hoje me constitui muito fortemente. A dança está em meus espetáculos, mesmo de teatro. E o teatro não consegue fugir dos meus trabalhos de dança. Acordei Pensando em Bombas foi meu primeiro trabalho na Cia Nova Dança 4, um trabalho de improvisação em tempo real, que na época não era muito usado como linguagem. Hoje é super- valorizado e trabalhado por muitas pessoas. Foi um abrir portas, um abrir caminhos de um como fazer e tudo isso com uma relação técnica muito forte. A Cia Nova Dança 4 realmente investigou e trabalhou na esfera da improvisação e na linguagem do teatro e da dança, fazendo espetáculos como muita performatividade.

E a experiência de dirigir o ator Gero Camilo, no premiado Aldeotas?

Gero Camilo havia sido meu aluno, assim como Marat Descartes. A primeira montagem é com Gero Camilo e Marat Descartes, em 1996, na EAD, na primeira vez que estive lá como diretora convidada. Foi uma delícia. Era um texto muito criativo. O Gero é um multitalento. É muito ágil, imagético. A liga entre eles, em termos de jogo, era muito saudável, muito positiva e dinâmica. Já havíamos trabalhado juntos em Prelúdico . Aldeotas foi uma síntese daquele momento, de todo trabalho que eu desenvolvia. E com esses dois talentosos atores pude verticalizar, deixando o espaço muito vazio de cenografia, com um tapete e um teto brancos, onde a luz incidia para dar as variações de lugares, de tensão. A grande magia da montagem era não ter cenário. Tudo era contato e de uma certa forma, as rubricas entravam em cena, de forma brechtiana. Não havia elementos, nem músicas, nem cenário indutor. Tudo estava no jogo dos atores, no jogo dos intérpretes. E é interessante, porque as pessoas viam as personagens que não estavam presentes, as músicas que não estavam presentes. A grande sacada foi trazer a imagem do corpo e da palavra e fazer o espectador construir no seu cinema mental a história que estava sendo contada. Gero é um maestro na condução de um texto, é fabuloso, além de ser um grande ator, assim como Marat.

Os diversos prêmios que recebeu, ao longo da carreira, têm algum significado especial?

Receber prêmios ou ter seus espetáculos premiados é algo muito relevante, porque é uma chancela da crítica, daqueles que estudam teatro, estudam dança, artes, nos colocando uma chancela. E isso é muito importante, não só para o público, mas também para os editais. Mas espetáculos que não são premiados, muitas vezes são bem recebidos. O melhor mesmo é o boca a boca. Ele é genial. É um prêmio popular.

Algum balanço a fazer do trabalho como docente da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, da qual foi diretora?

A EAD é muito importante para a cidade de São Paulo. Desde sua fundação, ela faz a diferença no desenvolvimento de atores e de gente de teatro. Uma escola com 70 anos de existência, fundada por Alfredo Mesquita e que se integrou à USP nos anos 60, com um formato estrutural entre prática e teoria, que fortalece muito a oportunidade de aprendizado do ator. É uma escola técnica dentro de uma universidade, um espaço muito democrático. Tem características muito diversas, no sentido de várias frentes de linguagens teatrais. Hoje, talvez, ela tenha uma característica de um movimento que se faz no teatro em São Paulo, a do teatro de pesquisa. Eu acredito realmente que a EAD tem uma força muito grande em nosso teatro.

Como foi o desafio de adaptar Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos, para o público jovem?

Histórias de Alexandre foi escrito em 1938. Anteriormente, eu havia feito uma pesquisa com um grupo de estágio de arte da EAD e montamos Macunaíma . O objetivo era trazer as palavras de Mario de Andrade para a escuta do espectador ,sem tradução do vocabulário inventado por ele, pois acredito que a palavra produza imagens. Quando a gente compreende uma palavra, a gente se apropria dela e aí torna-se capaz de trazer a imagem dessa palavra ao espectador. A gente vê isso em peças feitas em outras línguas e que são apresentadas no Brasil. Às vezes, você não sabe a língua e compreende muito bem a história, porque as palavras têm imagens. O desafio foi fazer caber na boca dos intérpretes as palavras de Graciliano Ramos do jeito que ele as escreveu em 1938. Acredito que conseguimos resgatar um universo que perdemos na contemporaneidade, a figura do contador de histórias e o hábito de sentar em roda e ouvir. Esse foi o desafio. Percebemos que para atingir as crianças mais novas era fundamental uma relação lúdica e a música traz essa ludicidade. O Grupo 59, que encenou Histórias de Alexandre, é um grupo muito musical, então propus que fizéssemos o espetáculo contando, cantando e, às vezes, cantando- contando. Ficou muito interessante esse jogo de canto e contação de histórias.

Em LadiEX, seu mais recente trabalho, a discussão gira em torno de questões sobre gênero e sexualidade. Por que o interesse de trazer ao palco o tema?

LadiEX éresultado de um espetáculo anterior, LadiEs da Inocência à Crueldade, em que as personagens centrais de estudo e de pesquisa eram Lady Macbeth e Ofélia. Essas duas personagens não se encontram, mas ao pesquisá-las vimos que tinham estruturas parecidas. Havia , já naquela época, um lugar de observação da mulher e de sua opressão pelo mundo masculino.Lady Macbeth, em determinado momento, faz uma evocação para que o mal a possua e ela possa executar seu plano de ambição para matar o rei. Ela diz: ‘Transformai meu sexo, para que eu possa agir’, ou seja, a mulher só podia agir se fosse transformada. No caso da Ofélia, a questão também está na relação da opressão do amor, do sonho, do desejo de ser amada. Ela é conduzida, manipulada pela vontade ou não vontade de Hamlet, pela loucura ou não loucura de Hamlet, que acaba por dizimar a sua família. Hamlet mata o pai de Ofélia. Ele a confunde completamente dizendo que a ama, depois que não a ama. Dizendo que ela vá para um convento, afinal de contas, ela se entregou a ele. LadiEX é um projeto de ativação política de circulação. A gente vive um momento político de dinâmica econômica e política da arte e precisamos nos desdobrar para achar modos e meios de irmos a todos os lugares, desde os teatros mais completos, às salas alternativas, de lugares mais distantes.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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