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António Marques de Almeida e Francolino Gonçalves. Duas perdas irreparáveis no pensamento historiográfico

À medida que o tempo passa, a Vida vai-nos chamando para mais vida através da morte. No ano passado, vários nomes da música que me formou e criou nas sensibilidades que tenho foram colhidas por essa torrente imparável que nos levará a todos para o thanatos. Este ano, no último mês, foi o meu “imaginário teórico” que sofreu a dura arremetida da morte, levando duas das pessoas que humana e academicamente mais me marcaram. Poderão dizer, os sábios da Vida, que é assim, que é pela orfandade que nos fazemos ao deixarmos de ter junto de nós as referencias que nos amadureceram.

Sim, é verdade, mas o sentimento de orfandade que fica leva a um vazio inexplicável que nunca mais será preenchido. Para cada um de nós há nomes que correspondem a Valores. António Agusto Marques de Almeida e Francolino Gonçalves eram, para mim, mais que nomes. Foram a possibilidade de eu poder conviver com dois dos mais brilhantes e acutilantes pensadores do último quartelo do século XX. Dois Mestres que, fora das luzes dos estrelatos mediatizados, marcaram, cada um de sua forma, gerações de historiadores.

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António Marques de Almeida, era um duplo caso raro na historiografia nacional. Vindo da área económica, fascinava-o os números. Na Faculdade de Letras da Un. de Lisboa, deu cadeiras de Matemática aplicada às Ciências Sociais; escreveu sobre História Económica e Social. Mas a sua presença no pensamento historiográfico foi muito mais importante que o seu trabalho nesse nicho muito concreto e nas últimas décadas pouco desenvolvido. Para Marques de Almeida, o número era muito mais que o que se podia contar no universo das trocas materiais. Falava em “aritematização do real”, uma forma de ver o mundo que vai construindo ao longo da modernidade, em que o numérico passa a ser a ferramenta cada vez mais essencial para descrever a realidade, uma verdadeira revolução nas mentalidades, com importantes contornos na História da Ciência e das Ideias. E tão por dentro da evolução do pensamento científico, Marques de Almeida foi arauto, tantas vezes totalmente só, da relatividade do saber histórico, das suas incapacidades e limitações científicas, da sua proximidade à literatura, mesmo quando se apresenta com uma metodologia científica.

A ironia da contagem do tempo, da inevitável junção algébrica dos momentos que se seguem uns aos outros, levou a que Marques de Almeida tenha falecido exactamente no dia em que iria a Bragança ver, pela primeira vez, o Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano que idealizara, mas nunca vira in situ. Não foi a Bragança no pino do Inverno quando o equipamento foi inaugurada. A saúde era frágil. Iria nesse dia, em meados de Junho, já com bom tempo. Mas não foi. Para sempre, como ele mesmo definia a hermenêutica que é o próprio processo histórico, esse equipamento estará inacabado porque não teve o seu olhar, a sua leitura subjectiva e única que, sendo apenas mais uma, pois a Obra estava feita e entregue aos leitores e visitantes, seria ímpar. Marques de Almeida era, para mim, a base do meu “imaginário teórico”, como escrevi na dedicatória da minha dissertação de Mestrado, assumindo eu como minha essa postura científica em que a teoria faz parte de um imaginário, não necessariamente de uma lógica cartesiana.

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Se tive o imenso prazer de conviver longamente com Marques de Almeida nos últimos 20 anos, o mesmo não se passou com Francolino Gonçalves, para minha pena. As suas visitas a Lisboa, eram escassas, e a sua vontade de regressar a Jerusalém, à Escola Bíblica e Arqueológica dos dominicanos, a que pertencia, era imensa. Mas as suas aulas no Instituto Oriental da Un. de Lisboa eram um contínuo murro no estômago, e os seus escritos continuarão a mostrar o que é a capacidade de problematizar, por muito tempo.

Francolino, biblista dos mais respeitados no mundo, convidado nas mais prestigiadas universidades, não se ficava pelos aspectos de erudição gramatical do texto bíblico. Ele agarrava as questões mais complexas e mais incómodas, tornando-as simples com a sua argumentação arguta, com a sua desconstrução dos modelos de religiosidade. Fosse com os textos sobre o Profetismo que longamente estudou, fosse com as questões da sexualidade, da mulher, ou fosse com a própria natureza do monoteísmo e de Javé, Francolino Gonçalves era a interrogação, o pensamento em movimento, em acção, sem qualquer constrangimento.

Os seus textos, em português, sobre Javé e a sua consorte, Asherat, serão marcantes para muitas gerações de Historiadores das Religiões. Mas mais marcante é a sua visão de verdadeira ruptura na forma como percebeu e desmontou a construção de duas religiões de Javé no mundo hebraico antigo. Se, por um lado, temos textos que nos mostram um nacionalismo arreigado, centrado nas narrativas sobre a fuga do Egipto, outros temos que se centram fora de um discurso “nacionalista”, que nos remete para a Criação, para o universal que é de todos e não apenas de uns eleitos. É o centro da construção da ideia monoteizada de deus: uma nação ou um todo? Um grupo de eleitos, ou o universal? De tão actual, custa a crer tenham sido estes os caminhos da religião de Javé há quase três milhares de anos, e que Francolino nos mostrou.

Espero não ter de fazer mais textos desta natureza. Tanto mais que, mestres como estes, poucos os há!

É assim que se fica mais pobre.

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