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Amigos e trambolhões

Foram os melhores amigos daquele primeiro ano do ciclo preparatório, e continuaram a ser os melhores amigos nos anos vindouros, até que, apareceu uma substância chamada heroína, e a amizade embora nunca se desfazendo, foi esmorecendo por afastamento, por motivos de caminhos trilhados em diferentes direções, mas isso, só o perceberemos bem mais adiante nas páginas que compõem esta história.

Mas havia os outros bons amigos que pertenciam ao grupo mais restrito da turma, e onde, já aqui dito e descrito,  se destacava, à cabeça com o seu melhor amigo, o Diogo, e logo de seguida, o Raul, o melhor aluno de toda a turma, e que encaixava no grupo, não só pela inteligência que se destacava a olhos vistos, mas também pelo seu bom carácter, o seu bom sentido de humor, a gargalhada contagiante, e a fidelidade de um bom amigo.

Mas o que mais lhes dava pica, além dos esporádicos namoricos e paixões assolapadas, eram os jogos de futebol. Mais do que correr atrás de uma bola a pontapeá-la, era a emoção de ganhar um jogo, de fazer uma finta, de marcar um golo, e até mesmo dar grandes e aparatosos trambolhões com a bola. Não por aselhice, mas sim pelo esforço, por aquela extra milha, pelo entusiasmo, pela dedicação, e acima de tudo, porque nesses e noutros momentos, os pés jogavam, as pernas corriam, mas a imaginação também lá estava para fazer o seu papel, para encher à sua volta, multidões que fisicamente ali não estavam, mas no imaginário, quase não cabiam nas extremidades do campo onde a partida se disputava. E haviam aplausos, gritos de entusiasmo, de apoio e coragem, alegrias, e no caso dos trambolhões, apreensões, medos solidários, preocupações quase impossíveis de suportar, de conter, ais e uis, em cada trambolhão, cada cambalhota. No fundo, que merda, por muito que estes putos tivessem a mania que eram homens, não passavam de crianças de 12 anos ou pouco mais o menos.

Depois havia os que jogavam melhor, os que jogavam menos mal, e os que não tinham jeito nenhum para a bola. Estes últimos ficavam sempre de fora, salvo muito raras exceções, ou seja, quando entre os melhores e os menos maus, não havia jogadores suficientes para constituir a equipa. Então era aí que se recorria aos desajeitados. Eusébios e Chalanas já havia que chegassem, era só preciso mais um ou dois corpos, só para cumprir regras, até porque o jogo era levado sempre muito a sério.

Balthazar lembra-se bem de um desses jogos de ocasião, em que quis o destino que a sua turma defrontasse aquela que era considerada a melhor equipa de futebol de todo o ciclo preparatório. Pois pudera… tinha lá um tal Luís, moço habilidoso de pés, que dançava e gingava de um lado para o outro, levando tudo à sua frente, que é uma maneira, se não engraçada, no mínimo curiosa, que a linguagem do futebol tem para descrever os que depois de fintados ficam para trás. Só este Luís valia quase por uma equipa inteira, não deixando os seus créditos por mãos alheias. Todos lhe conheciam a habilidade, e Balthazar e a sua turma, composta de jogadores bons, ou talvez melhor dizendo, bonzitos, jogadores menos maus, e alguns desajeitados, sabiam disso também e por isso punham um grande empenho naquele jogo, até porque, o Luís pusera na fuça o seu mais sarcástico sorriso de desdém, enquanto que com o pé fez levantar a bola elevando-a no ar, apanhando-a logo de seguida no meio das pernas, para a deixar cair em escassos segundos, metendo-lhe novamente o peito do pé por baixo para que não tocasse no chão, e com tudo isto, como se suficiente não fosse, quase não saiu do sitio, quase não deu passos em frente ou para trás, quase não se moveu para os lados, cingindo-se ali ao seu pequeno espaço, tratando por tu a bola, sabe-se lá se com intenção de intimidar os seus adversários mesmo antes de o jogo começar, se com a intenção de se exibir, se as duas coisas ao mesmo tempo. Perder este jogo, mais do que doloroso e difícil de aceitar, era a revolta de deixar a arrogância do figurão ficar por cima, porque assim sendo, a sua arrogância transformar-se-ia numa autentica humilhação, não só para Balthazar, como para toda a turma, os que jogavam bem como os que ficavam a ver, mesmo aqueles que pouco se importavam com os jogos de futebol.

O ciclo preparatório tinha esta grande diferença da escola primária. As pequenas coisas também importavam, se é que se pode considerar coisa pequena perder um jogo de futebol nesta idade, em que sonhar se fazia a maior parte das vezes bem acordado, às vezes, a correr atrás de uma bola, como era o caso. Nem sequer era o facto de perder o jogo que importava aqui, porque isso seria o mais natural a acontecer. Espinhoso seria não ganhar, não aproveitar esta oportunidade única para agarrar a chance, a grande hipótese de sair dali com um estrépito resultado histórico, daquele ano do ciclo preparatório. E com isso em mente, mas mais com a garra no coração, ou onde é que a garra se agarra, lá se saltou para o campo e se iniciou a partida. Relato da mesma só aconteceu na cabeça de cada miúdo que no jogo participou, especialmente, no exato momento em que a bola esteve nos seus pés, e onde a habilidade mais imaginada do que real, levou o relatador ao rubro, e este gritou, berrou, emocionou-se a descrever tão perfeita finta, tão minuciosa jogada, tão fantástica… já o adversário tinha tirado a bola e corria em direção oposta, e o sonho parecia ter dificuldade de se despegar e enfrentar a realidade.

Já se sabe que o tal Luís valia por toda a equipa, mas a equipa sem o Luís não valia assim grande coisa.

– É uma equipa de um homem só. – Dissera o Diogo, no intuito de incentivar a sua equipa, que por falta de craques como o Luís, teve que recorrer aos jogadores menos bons e aos desajeitados.

E a coisa até nem correra mal de todo. Aliás esta afirmação não passa de uma modéstia que não sendo falsa, nem sequer descreve com fidelidade o grande jogo que ali se disputou. É certo que o habilidoso do Luís de cada vez que apanhava a bola nos pés, era um autêntico suplício para o conter, ou para o controlar, mas não era impossível também. Às vezes querendo mostrar habilidades em demasia, acabava por perder a bola, e nessa altura, a vontade de vencer, a vontade de ficar por cima, supria toda e qualquer dificuldade que aparecesse pela frente, mesmo que a dificuldade fosse o Luís, e a equipa dava por si a trabalhar mais arduamente pela vitoria, não se recostando para trás, acreditando à medida que o tempo ia avançando, que era possível ganhar.

Mas não foi. Perder também não perderam. Mas, nos momentos finais, quando o jogo estava empatado, quando havia em igual numero, golos marcados pelas duas equipas, surgiu a grande chance, aquela chance que levaria o relatador mais entusiasta a quase perder a voz, e com isso a oportunidade de descrever aos seus ouvintes, fossem eles seguidores de jogos pela rádio, o grande momento que estaria a acontecer, e o que era previsível vir a seguir, ou seja, o momento em que Balthazar, finta um, finta outro, finta o guarda-redes que veio a seguir do outro que já tinha sido fintado, e corre isolado para a baliza completamente escaqueirada, a sentir já por todos os poros do seu corpo, o entusiasmo da vitória que se desenhava mais do que claramente em frente dos seus olhos, quando subitamente, primeiro como que vindo de bem longe, e quase de seguida, assim que depressa emergia à realidade do momento, ali logo ao seu lado, a voz entusiástica do Raul… – Passa a bola, passa a bola… – e ele passou, gritando… – marca…

Era o marcavas! A parte mais fácil seria a de chutar em frente, empurrar a bola se assim o quisermos, para dentro da baliza. Não tinha que enganar, não havia ciência no assunto. Mas o Raul fez o mais difícil. Saltou-lhe para cima como quem salta para uma prancha de surf, rolou com ela, a bola, fez uma pirueta no ar e caiu estatelado no chão. Um artista de circo não teria feito melhor.

Ninguém quis acreditar. Por segundos ali ficaram todos especados a olhar sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. O Raul também nada disse. Soltou a bola que lhe ficara estática entre as suas pernas, levantou-se, sacudiu as calças, e já depois do guarda-redes ter pegado na bola calmamente, desatou a rir as gargalhadas. Mas não ria porque estava no gozo. Também não ria por estar feliz. Às vezes as pessoas riem quando estão nervosas.

Vontade de o matar, esfolar se o termo não pecar por exagero, enfiar-lhe o braço inteiro pelas goelas abaixo e vira-lo do avesso, foi o que não faltou a Balthazar quando viu as esperanças de um feito ímpar se esfumarem ali mesmo à sua frente. Oportunidade única, aquele tipo de coisas que só acontecem uma vez e é por acaso, porque andassem lá os deuses da sorte atentos e nada disto chegaria sequer perto de acontecer.

– Mato-te desgraçado, juro que te mato.

Mas não matou, não senhor. O Raul podia não ter lá muito jeito para a bola, mas corria com bastante destreza, especialmente se visse a sua vida ameaçada, mesmo sabendo que seria muito improvável que o amigo, com pouco mais o menos de 12 anos, fosse cometer um assassinato só porque estava furioso por perder um jogo de futebol, por muito importante que a porcaria do jogo fosse. Mas pelo sim pelo não, desatou a correr, não sem deixar de deitar o olhar por cima do ombro e gritar… – eu não tive culpa, eu não tive culpa.

Na primária não aconteciam coisas destas, não haviam amizades assim, porque na primária, ainda Balthazar andava a tentar entender como lidar com os medos, e conciliá-los com a aprendizagem ao mesmo tempo.

A escola primária tinha sido de facto uma experiência marcante, pesada, e a maior parte das vezes atemorizadora. Na sua ainda curta existência como ser humano, não era esta a melhor maneira de se iniciar na sua educação escolar, habituado que estava aos cuidados da mãe, e aos mimos da tia Ana, que fora quem praticamente o criara.

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