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A revolta de Nika

Foi memorável a minha primeira visita a Istambul. Os monumentos, todo um património único, a envolvente, a sociedade turca. Mas o que mais me marcou foi a conversa que no final da visita à Basílica de Santa Sofia tive com o guia local que me acompanhou.

O ponto de partida foi simples: quando ele me diz que a actual basílica, com quase mil e quinhentos anos de idade, não era a original, que a anterior tinha sido destruída por um incêndio; questionei se se sabia da razão. E foi aí que se abriu todo um dossier de uma imensa actualidade.

Num país também tão afectado hoje em dia com os actos nada civilizados de muitos dos que vão aos eventos desportivos, o dito guia atirou, como quem arremessa algo muito pesado, a simples frase: “A Santa Sofia foi destruída num confronto de claques desportivas”. Na altura ele contou-me um pouco da sua versão, uma versão talvez pouco rigorosa a nível histórico, mas muito sentida. Regressado a Portugal, fui tentar saber um pouco mais desse terrível evento, no qual me custava a acreditar e que, ironicamente, tinha destruído a “Santa Sabedoria”, levando o seu nome à letra.

Enfim, como em tudo, muito se pode enquadrar em termos de contexto, em termos de toda uma situação social, no fundo, de um clima de revolta latente. Mas, como causa próxima, sim, foi um grande incidente entre claques, perante a atribuição da vitória a um cavalo e não a outro, que levou a uma rebelião que incendiou parte da cidade antiga de Constantinopla, e que terminou com um banho de sangue onde terão morrido mais de 30.000 pessoas.

Hoje, longe das corridas de cavalos da Antiguidade, muito mais longe das lutas de gladiadores, parece pouco termos aprendido nestes quase dois milénios que medeiam entre nós e os acontecimentos de Constantinopla no ano de 532.

Mais uma vez, os nomes trazem-nos ironia: o nome da dita revolta, «Revolta de Nika», quer dizer “revolta da vitória”, como se fosse essa busca sôfrega de vencer o mal do desporto quando não se consegue viver a disputa pela disputa.

Mas foi por achar que o desporto é uma ferramenta excepcional para transmitir valores, que aceitei ser Embaixador do Plano Nacional para a Ética no Desporto – do IPDJ. E é pela actual situação de constantes atropelos de uma ética-mínima que tenho de elevar a voz e dizer o quanto me envergonha aquilo a que hoje teimamos em chamar desporto, mas nada dessa noção tem.

Os agentes, todos eles, têm de olhar para o que se está a passar e têm de mostrar à “república”, ao comum que somos, que repudiam este estado de coisas afastando-se da voragem de dezenas de horas semanais de instigação ao confronto em comentários televisivos perfeitamente alienadores e vazios. Os dirigentes têm de ter consciência do mal que estão a fazer à sociedade como exemplo, quando instigam e quando possibilitam que claques estejam num constante ponto de ruptura com o fair-play e muito próximo da violência, quando não da própria ilegalidade e da criminalidade.

Mas, por fim, os verdadeiros desportistas, têm de afirmar altíssimo que o seu corpo, as suas capacidades, a sua luta pela superação, aquilo que é o desporto, não podem ser mais o campo para a afirmação animalesca daqueles que nunca souberam o que é o desporto, tendo apenas feito carreiras no mais vil caciquismo, na mais baixa imposição do medo, no mais repugnante domínio das hostes pelo cortar das consciências.

Hoje, após semanas em que vimos árbitros a serem agredidos em pleno jogo, quando ouvimos alguns dirigentes com discursos inflamados que apenas fomentam a luta e o ódio, quando vemos claques a cantar músicas que desejam a morte….

Muito está mal. Urge olhar para a Constantinopla do ano 532, para ver novamente a Hagia Sophia a arder, e perceber que quem está a arder somos nós enquanto sociedade, na nossa incapacidade de tornar o desporto em algo de superior e sublime.

Como cidadão, tenho vergonha.

Estamos tão longe do desporto!…

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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