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A liberdade de pensar a Liberdade, entre David Bowie, Emma Lazarus e a crise dos refugiados

You know, I’ll be free

Just like that bluebird

Now ain’t that just like me?

Oh I’ll be free

David Bowie, Lazarus, Blackstar, 2016

A noção de Liberdade, aplicada ao universo religioso, é das mais complexas realidades. Num sentido muito cristão, mas também muito forte nas correntes iniciáticas, onde a imagem da morte é a porta para a ressurreição, para uma nova vida, a liberdade encontra-se exactamente na morte, tal como David Bowie no-la apresenta no texto acima transcrito.

De facto, Bowie, num poema musicado com o título «Lazarus», remetendo-nos exactamente para uma emblemática ressurreição, equaciona a liberdade como possibilidade da morte. Aliás, este tem sido um longo caminho teológico e mental: a morte como condição de e da liberdade.

Hoje, num tempo em que nos afastamos cada vez mais da morte, higienizando os espaços sociais dessa realidade que dantes fazia parte da família, da casa, regressamos à morte sem saber o que dela fazer, imagem de que o seu oposto, a vida, talvez pouco significado tenha de existencial, de espiritual, a não ser a repetição quotidiana de ritmos retirados dos sentidos antigos.

Já sem nada de teológico, e com muito pouco de místico, a liberdade reduz-se na maioria das conversas hodiernas a um jogo de tempo entre o poder fazer e o ser obrigado a fazer, como se aqui se jogasse o máximo, a plenitude de um arbítrio que, na prática, apenas nos diz se a certa hora podemos ver determinado programa de televisão ou se temos de estar a trabalhar e o vemos depois. Isto é, reduzimos a liberdade a jogos de horários, à criação de “escapelas”, à gestão de tempos, de espaços. E a vontade pouco mais não é que isso, numa ilusão de um tudo que é nada.

Comodamente, generalizou-se a ideia de que a “Liberdade termina onde começa a liberdade do outro”. Ora, esta não é a afirmação de uma liberdade, mas sim a negação do pensamento sobre ela mesma, criando, à partida, uma definição que nos liberta de pensar no que é a própria liberdade.

O desafio da verdadeira Liberdade encontra-se na afirmação de que a minha liberdade está exactamente onde está a Liberdade do outro. E isso em nada tolhe, mata ou diminui o dito “outro”. A prova máxima de civilização que devemos procurar é a qualidade, a habilidade, de poder ser livre sem o constangimento do legal ou do convencionado. Isto é, Respeito apenas por si só.

No caso das culturas que se pensam instrumentalmente com o português, a dimensão da liberdade é ainda mais acanhada, ou não fossemos nós o pleno exemplo de uma sucessão de sistemas, regimes e governos em que nos acabrunhámos, em que nos diminuímos, em que tantas vezes nos demitimos do arbítrio, deixando nas mãos de uns poucos a decisão de todos.

De facto, em português somos muito pobres naquilo que vocabularmente à Liberdade respeita. Ao contrário, no inglês, por exemplo, encontramos duas palavras que em português traduzimos da mesma forma, mas que, de facto, nos remetem para coisas substancialmente diferentes. «Liberty» é diferente de «Freedom». Se a liberty nos remete para um conceito, uma dimensão acima de cada um de nós, freedom já a cada um implica no seu quotidiano, nas acções que cada um realiza. É a diferença entre o desígnio, obviamente legítimo, entre a ambição individual, e a concretização ou identidade colectiva.

E é no cruzamento entre lIberty e freedom que somos obrigados a regressar à questão fundamental do arbítrio. Onde se encontra a liberdade de acção, o desígnio criado por cada um ou, talvez ao contrário, o desígnio divino criado para cada um?

Entre uma resignação e uma vontade de superação, joga-se grande parte da nossa civilização neste momento onde a criação parece ter-nos abandonado, resignando-nos a pequenos rasgos da inventividade, da generosidade, do risco que os grandes momentos implicam e carecem porque apenas deles pode nascer o diferente, o desafiante, o que nos leva para a além da liberdade de cada um no seu mundo, freedom, para a liberdade do mundo expressa em todos e cada um de nós, lIberty.

De facto, a Europa nunca conseguiu superar o antagonismo entre uma leitura religiosa em que o arbítrio é a principal característica do ser humano, e a incapacidade de agir contra o “fado”, contra o que está designado ancestralmente.

É neste momento em que à Europa se colocam momentos em que se desejavam desígnios e capacidades mobilizadoras, que merece a pena recordar uma escritora, ironicamente chamada de Lazarus como o poema de Bowie.

Emma Lazarus, em finais do século XIX, numa época em que os EUA se debatiam também com imensas levas de refugiados e de migrantes, escrevia um texto que algum tempo depois foi escolhido para estar inscrito na base da Estátua da Liberdade (Liberty e não Freedom):

Diz Emma Lazarus, uma judia descendente de cristãos-novos da Beira Alta portuguesa:

Não como o gigante bronzeado de grega fama,
Com pernas abertas e conquistadoras a abarcar a terra
Aqui nos nossos portões banhados pelo mar e dourados pelo sol, se erguerá
Uma mulher poderosa, com uma tocha cuja chama
É o relâmpago aprisionado e seu nome
Mãe dos Exílios. Do farol de sua mão
Brilha um acolhedor abraço universal; Os seus suaves olhos
Comandam o porto unido por pontes que enquadram cidades gémeas.
“Mantenham antigas terras sua pompa histórica!” grita ela
Com lábios silenciosos “Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,
As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade
O miserável refugo das suas costas apinhadas.
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,
Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.

Entre resignação, a incapacidade de olhar mais longe, e os medos de cada momento, sabe bem olhar para o alcance destas palavras, materializadas numa estátua que representa, ela mesma, um colectivo que viu na imensidão das desgraças de cada um a oportunidade para que todos avançassem e se libertassem.

Imagem de que a Liberdade, mesmo quando ela nos obriga a equacionar a liberdade de cada um, é um desígnio, somos obrigados ao confronto com o que de actual este poema tem…

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